Quando uma criança fala cedo, faz perguntas complexas e aprende com facilidade, muitos pais se perguntam: “será que meu filho é superdotado?” A ideia de habilidades que estão acima do esperado para a idade sempre despertou curiosidade, mas também muitos equívocos. Durante muito tempo, o olhar ficou preso quase só ao Quociente de Inteligência (QI) e ao desempenho escolar, como se crianças com altas habilidades fossem apenas aquelas com “nota alta em tudo”. Atualmente, os estudos mostram que essa realidade é bem mais complexa e que essa complexidade precisa ser respeitada para não ferir a subjetividade da criança nem alimentar expectativas exageradas.
Para falar sobre isso de forma responsável, o IDe+ conversou com a psicóloga Mari Angela Calderari Oliveira (CRP 08/1374), especialista em avaliação psicológica, psicoterapia, sócia da @echospsicologia e professora universitária. Ela explica o que são as altas habilidades, por que o conceito mudou, se existe idade certa para avaliar, o que observar em casa e na escola, e como lidar com a ansiedade dos pais diante de diagnósticos e rótulos.
Mari Angela começa lembrando que, por muito tempo, altas habilidades foram confundidas com um estereótipo bastante restrito.
“Durante muito tempo, indivíduos com alta capacidade intelectual, frequentemente associada a um elevado QI, eram automaticamente rotulados como pessoas com altas habilidades ou superdotadas. Essa visão estava predominantemente ligada ao desempenho acadêmico e às habilidades tradicionalmente valorizadas, como facilidade em matemática e proficiência na comunicação verbal”, contextualiza.
Com o avanço das pesquisas, especialmente da neurociência e das teorias cognitivas, esse olhar foi ampliado. Hoje se considera o cérebro como um sistema complexo, multifacetado e individualizado. A cognição vai além das habilidades acadêmicas.
De acordo com a neuropsicóloga, atualmente se reconhece que pessoas com altas habilidades podem apresentar:

Ela ressalta ainda a importância de considerar a subjetividade de cada indivíduo, sua história de vida, suas particularidades. Em vez de encaixar as pessoas em “caixinhas”, é preciso analisar o funcionamento individual.
Diversas teorias cognitivistas mostram que altas habilidades podem se manifestar em áreas como expressão corporal, conhecimento espacial, interesse por temas ligados à natureza, capacidade de estabelecer relações interpessoais e intrapessoais, além de habilidades musicais, práticas, analíticas ou criativas.
No campo das políticas públicas, os termos “altas habilidades” e “superdotação” muitas vezes aparecem juntos, como “Altas Habilidades/Superdotação (AH/SD)”. Há quem tente separar, associando superdotação ao desempenho acadêmico e altas habilidades a capacidades acima da média, mas Mari Angela considera que o uso conjunto reflete melhor a complexidade do potencial humano.
Para ela, o fundamental é que a pessoa consiga canalizar esse potencial de maneira produtiva, de modo que traga satisfação, reconhecimento e sentido. Quando isso não acontece, o quadro pode se tornar doloroso.
“A falta de reconhecimento e apoio durante o desenvolvimento pode levar à camuflagem desse potencial, resultando em estratégias disfuncionais para lidar com o pensamento acelerado, o foco intenso e outras características associadas às altas habilidades. Essa situação pode, por vezes, conduzir a diagnósticos equivocados e a distorções na subjetividade do indivíduo.”
Uma das grandes angústias dos pais é: “qual é a idade certa pra testar?”. A especialista explica que não existe uma idade ideal única. Dentro da concepção atual de altas habilidades, não se pode reduzir tudo a um número de QI. Existem, sim, escalas consideradas “padrão ouro” para medir QI, mas a avaliação vai muito além disso.
No caso de crianças pequenas, ela dá um exemplo: “uma criança de dois anos pode mostrar precocidade na linguagem, o que é um fator importante em muitos casos. Isso, porém, não significa que já se possa fechar um diagnóstico de altas habilidades”. O processo de avaliação, segundo Mari Angela, não é o uso de um único teste, mas um conjunto de tarefas que permitem olhar: habilidades cognitivas, funcionamento afetivo, aspectos relacionais, maneiras de responder a desafios.
A partir desse conjunto, o profissional começa a perceber pontos que precisam ser potencializados, para que a criança tenha oportunidades de desenvolver seus talentos. O diagnóstico se torna mais sólido quando essas habilidades vão se mostrando sustentáveis ao longo do desenvolvimento.
“É possível que uma criança de cinco anos já apresente todas as variáveis necessárias para se falar em altas habilidades, mas também é possível que, aos cinco anos, ela apresente apenas alguns potenciais, ainda não totalmente estruturados. Nesse caso, fala-se em potenciais, e não em um quadro definido de altas habilidades”.

Quando se fala em “sinais”, é comum que pais e professores procurem listas prontas e tentem encaixar a criança em categorias rígidas. A psicóloga é bastante cuidadosa com isso.
“Eu acho que não vamos falar em sinais, mas em características de funcionamento. Às vezes, quando a gente pensa em sinais, podemos criar uma categoria em que a criança ou adolescente é incluído, mas não se olha o todo dela.”
Ela conta que, em sua prática clínica, tem trabalhado muito com avaliação de adultos que chegam com outras demandas – suspeita de TDAH, depressão, transtorno do espectro autista – e, no caminho da avaliação, surge algo mais, como pensamento acelerado, poder criativo, potencial em determinadas áreas e um histórico em que isso nunca foi reconhecido na infância ou adolescência.
Isso costuma trazer impactos importantes nas questões afetivas. Por não terem tido autoconhecimento e apoio, muitas pessoas constroem estratégias disfuncionais para lidar com seu jeito de pensar, sentir e se relacionar. Sentem-se diferentes, não pertencentes, com dificuldade de conversar com as pessoas. Vão se fechando, os focos de interesse tomam conta, e a vida social se empobrece.
Por isso, observar e potencializar essas características desde a infância é fundamental. Entre as características citadas pela neuropsicóloga estão:
Ela reforça que não se trata de uma “cartilha” fixa, e sim de um modo de funcionamento que precisa ser visto no conjunto.
Mari Angela alerta que os estudos atuais sobre o potencial do cérebro mostram que altas habilidades podem estar em áreas que não são, historicamente, reconhecidas como tal. Alguns exemplos são:
Ela explica que hoje se fala em inteligência analítica, prática e criativa, e que a avaliação é feita em cima dessas inter-relações: alguém pode ter inteligência analítica com grande potencial na área musical. Outra pessoa pode ter inteligência prática com grande potencial na área corporal-cinestésica.
Essas diferentes vias fazem com que cada sujeito acesse o conhecimento de formas diferentes e, muitas vezes, mais rápidas em certas áreas. Quando a escola e a família têm essa visão mais global, podem oferecer desafios compatíveis com a curiosidade da criança e promover experiências diversas para que ela siga desenvolvendo seus potenciais.

Um ponto forte da fala da neuropsicóloga é o cuidado com os desafios emocionais que podem acompanhar as altas habilidades. Ela descreve um cenário muito comum:
Isso tudo pode gerar um funcionamento afetivo fragilizado, em que a pessoa não se sente pertencente, fica sobrecarregada e desenvolve formas de se proteger que nem sempre são saudáveis.
Por isso, Mari Angela destaca a importância de canais de descarga desse potencial, como atividades que direcionem a criatividade e o conhecimento para a produção – pesquisa, projetos, criação em diferentes áreas. O acompanhamento psicológico é fundamental em muitos casos, especialmente quando se faz o diagnóstico na vida adulta e o indivíduo finalmente compreende por que passou por tantos percalços.
A especialista aponta alguns eixos importantes na avaliação:
Na sala de aula, muitas dessas crianças são vistas como “apáticas” ou “que incomodam” justamente pelo nível de exigência que têm em relação ao desafio e à criatividade: querem saber mais, perguntam muito, desejam aprofundar interesses. A psicóloga reforça que isso deveria chamar a atenção de pais e professores, mas sem cair em estereótipos. As características tomam forma diferente em cada sujeito. Por isso, “toda avaliação não é um fim, é um começo”. Serve para compreender o funcionamento subjetivo e ver até onde a pessoa pode ir além do que está mostrando no momento.
Ela também chama atenção para o perigo das listas de características que se espalham nas redes sociais, em que as pessoas começam a se encaixar sem um olhar clínico e contextualizado.
Outro ponto central é a importância de conhecer o desenvolvimento da criança. Para falar de aprendizagem acelerada, grande curiosidade, facilidade em estabelecer relações, vocabulário avançado, pensamento criativo, sensibilidade e foco de interesse, é preciso sempre perguntar como isso aparece em cada fase do desenvolvimento e em que momento isso passa de algo típico da idade para algo que merece uma avaliação mais aprofundada.
Por isso, é tão difícil estabelecer uma idade fechada para identificar altas habilidades. Há crianças que expressam essas características muito cedo, outras mais tarde.

Quando o tema é altas habilidades, muitos pais se enchem de dúvidas e preocupações. Mari Angela destaca que não é possível fazer um trabalho sério com a criança sem considerar o sistema familiar:
“A alta habilidade está nesse sistema e faz parte desse funcionamento, desses vínculos dentro da família”, explica a especialista.
Ela comenta que, muitas vezes, os pais se reconhecem na avaliação do filho, identificando comportamentos próprios que ajudam a compreender a própria história. Por isso, acolher os pais é fundamental. Não só para explicar o diagnóstico, mas para orientá-los a acolherem o filho sem criar expectativas que vão além do que ele pode dar.
Mesmo crianças com altas habilidades têm um ritmo e um modo próprio de funcionar. Um risco comum é que, após o diagnóstico, pais comecem a ler muito sobre o assunto e tentem encaixar tudo no filho. Isso pode aumentar a ansiedade e transformar o diagnóstico em fonte de pressão.
Por isso, quem trabalha com crianças e adolescentes com altas habilidades precisa incluir orientação parental. Não é possível fazer um trabalho só com a criança de forma isolada.
Mari Angela alerta para um ponto delicado: não é possível exigir que um filho com altas habilidades seja excelente em tudo. Ele pode ter áreas em que não dá conta, e isso não é um problema. Da mesma forma que crianças com dificuldades de aprendizagem têm potenciais que precisam ser reconhecidos, a criança com altas habilidades não pode ser vista apenas por suas capacidades. Isso exige equilíbrio na avaliação e na intervenção.
Nesse contexto, o papel da escola é determinante para reconhecer que, embora haja muitos alunos, cada um tem um funcionamento próprio. Além disso, ter um olhar acolhedor para todas as crianças, com ou sem altas habilidades e capacitar educadores para compreender essas diferenças e trabalhar com elas.
Ela observa que não adianta falar em inclusão e em políticas públicas se as escolas não tiverem subsídios e formação para lidar com essas realidades.
Outro ponto importante a considerar é que, muitas vezes, o desenvolvimento cognitivo é acelerado, mas o desenvolvimento afetivo não acompanha na mesma velocidade. Assim, a criança ou o adolescente podem ter raciocínio muito elaborado e conseguem compreender situações complexas, fazer conexões e análises profundas, mas na hora de lidar afetivamente com o que entenderam, não dão conta.
Isso pode gerar problemas sérios de adaptação e pertencimento. A pessoa passa a se sentir “como um ET” e o sentimento de não se encaixar nos grupos se intensifica. Ao mesmo tempo, há uma expectativa externa alta: todos esperam que ela dê conta de tudo. É nesse contexto que vem a importância de:

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