Alcoolismo: a doença quase tirou a sua vida, mas hoje ele é exemplo de recuperação e inspira famílias

Alcoolismo: a doença quase tirou a sua vida, mas hoje ele é exemplo de recuperação e inspira famílias

“Concedei-nos, Senhor, a serenidade”: fazer essa oração tem muitos significados para João*. Esperança, fé, apoio e recomeço são alguns dos que passam pela história do homem que abriu as portas da sua casa para compartilhar a sua vida e falar “como é bom estar sóbrio”. O Dia do Alcoólico Recuperado é comemorado em 9 de dezembro no Brasil. A data pede reflexão e, por isso, a gente traz essa jornada de transformação inspiradora, da quase morte à reconexão com o amor.

Passe um café, pegue a sua xícara e vamos conhecer essa história cheia de altos e baixos, perdas, separações, mas também de muito amor e perdão. Afinal, “depois da tempestade vem a bonança” (Mt 10,16-23).

*A janela de João – nome fictício para manter o anonimato do entrevistado

Era um sábado de céu azul e a rua florida se desenhava pela janela. Dentro de casa, o cheiro do café e o som da Rádio Evangelizar embalavam o momento de abrir as memórias mais difíceis que alguém poderia ter. A música que tocava baixinho chegou como um lembrete de que a providência divina está sempre ali: Padre Reginaldo Manzotti cantava “Ninguém te ama como eu/ Olhe pra cruz, esta é a minha grande prova/ Ninguém te ama como eu”.

Foi nesse cenário que João* nos recebeu para falar sobre a doença que lhe tirou quase tudo por décadas: família, fé, trabalho e dignidade. Um casamento esmagado pelo álcool, uma relação quase acabada com a filha, a autodestruição profissional, a tristeza que causou aos pais e irmãos. Foram muitas tentativas até que a ação de uma irmã, em especial, começou a ter efeito e ele decidiu se tratar por todos os meios.

O caminho teve inúmeras recaídas, décadas de profundo sofrimento e desesperança, como um acidente de carro quando dirigia alcoolizado que quase o levou à morte, para que hoje ele estivesse aqui, contando a sua história com serenidade, humildade e amor, conectado à Palavra de Deus e embalado pela música que só foi interrompida pela chegada das netas em busca do avô carinhoso e cuidadoso.

Há mais de 20 anos sem dar o primeiro gole – “por mais 24 horas” –, ele conta como aceitou ajuda e teve o necessário para ser um milagre: a fé em Deus, o apoio médico e de outros profissionais, a ajuda da família e a confiança da comunidade, que lhe estendeu a mão. Além disso, destaca suas atividades constantes no Alcoólicos Anônimos, pois sabe como o bem verdadeiro deve ser compartilhado.

“E como você consegue ser mais forte que a doença?”, perguntamos. “É muito bom estar sóbrio. Nenhuma sensação é melhor que essa que estou sentindo agora”.

 

Uma vida desviada pelo álcool 

João foi criado na fé. De uma família católica, trabalhadora e de honestidade extrema, composta por 11 irmãos, aprendeu em casa todos os valores que deveria seguir e chegou a ingressar no Seminário aos 12 anos, onde estudou por quatro. Quando deixou a vida de seminarista, mesmo assim ia sempre à Missa, casou aos 24 anos e, na juventude, a bebida começou a fazer parte da vida – ainda que inicialmente não parecesse um problema. Afinal, “bebia com o próprio dinheiro”, como conta.

Porém, as pessoas ao redor já tinham começado a perceber que algo ali estava errado, que João já não era o mesmo. A doença começou a ser protagonista da sua vida. Foi quando, aos 32 anos, os irmãos o levaram a um hospital psiquiátrico.

“Não entendia a razão de estar ali, achava que não precisava. Logo que saí, fui beber para sentir a sensação de prazer. Foi depois disso que cheguei ao fundo do poço”, lembra João. 

Nessa época, nenhuma bebida durava em casa. Eram litros e litros de whiskey, mas não aceitava a palavra e o sentimento de ser “alcoólatra”. 

 

O despertar da consciência

Com o tempo, João começou a entender que a doença o tinha dominado. Foram muitas promessas de “nunca mais”, que eram mentiras soltas. Gostaria de se reencontrar, mas não tinha forças. Chegou a procurar médicos, tomar remédios e passou a aceitar ajuda, mas o seu comportamento ainda não era de quem entendia o real poder da doença. Naquele tempo, havia a falsa sensação de que era autossuficiente, o que não é possível dizer quando se trata da doença do alcoolismo, mesmo após dois anos sem beber, como era seu caso.

Casado, pai de duas filhas e sem conseguir priorizar a família e o trabalho na floricultura que mantinha, sua esposa trabalhava todo tempo para dar conta da casa e ele gastava todo seu dinheiro com álcool. Uma de suas filhas, de apenas dois aninhos, faleceu. E o buraco em que caía parecia não ter mais fim. 

“Eu não comprava a mercadoria da floricultura e lembro da imagem terrível, até fúnebre da época. Precisava beber cedo. Mesmo sem dinheiro, eu dava um jeito, ‘enrolava’ o dono do boteco, mentia pra quem precisasse e era convincente”, relembra.

Flores mortas - alcoolismo

 

Casamento destruído e o acidente

Com o casamento destruído, o casal se separou e João voltou à casa dos pais. No dia 25 de junho de 2000, tinha 50 reais no bolso. Passou em um posto de combustível, abasteceu e fez o que chamou de “rota de bebida nos bares”. Guiado por Deus, mesmo alcoolizado, conseguiu chegar quase em casa. Bem próximo da paisagem que hoje estão as plantas e a natureza da sua janela, ele bateu o carro. Foram 38 pontos na cabeça, o automóvel ficou completamente acabado.

“Poderia ter matado alguém ou até mesmo morrido e, mesmo assim, eu pensei se a garrafa de álcool que estava no carro ainda estava lá para eu beber”, lamenta.

A família se reuniu e procurou uma clínica. Foi quando chegou à Comunidade Vida Nova no dia 13/07/2000. Internado no local, a partir das conversas com outras pessoas que enfrentavam o mesmo problema, e com os profissionais, começou a realmente admitir sua fragilidade e se fortalecer na fé para retomar sua vida.

“Entendi que realmente era impotente perante o álcool. E foi aí que começou a minha verdadeira caminhada de sobriedade”.

 

João começou então a fazer os Doze Passos de Alcoólicos Anônimos. Dia a dia, foi recuperando a confiança das pessoas. A sua filha, que passou anos afastada após muitas decepções, foi buscá-lo na saída da clínica. No período, o bairro em que mora abriu um grupo do A.A e ele e um amigo assumiram a organização. 

De cabeça erguida, voltou a cumprimentar as pessoas, a se sentir bem e em paz. Recebeu acolhimento e esse apoio até hoje o emociona. Teve a oportunidade de trabalhar em uma escola e nem acreditava que alguém poderia confiar assim nele novamente – mas isso aconteceu e exerceu bravamente suas atividades por 15 anos, até se aposentar. Dois meses sóbrio já valiam toda uma vida! Era a esperança materializada.

João sorri com os olhos e com o coração ao lembrar que a mãe o viu sóbrio por oito anos, até partir para a vida eterna, e o pai bem mais tempo. Os irmãos têm orgulho e também são exemplo para outras famílias.

E será que ele sente algo como culpa? A resposta é não. Foi perdoado: por Deus, pela família e por ele mesmo. Por isso, não há espaço para sentimento negativo e apenas para gratidão e toda transformação que representa também para a comunidade. 

Hoje, João ajuda muitas pessoas no A.A. e é procurado por famílias que estão enfrentado a doença. 

“Para que eu estivesse aqui, para que a gente pudesse ter essa conversa e levar a esperança a outras pessoas, para que eu pudesse agir em situações de outras famílias, foi preciso passar por tudo aquilo. A alegria de ajudar alguém e a sensação de estar sóbrio tomando um café me preenchem da maneira mais forte que há”, compartilha com toda serenidade que faz parte da pessoa transformada que ele é.

A rotina é de orações, cuidado com as netas, conversa com a filha e com toda família. Em suas orações diárias, o diálogo com Deus é de gratidão e amparo. Afinal, como diz a música que embalou o momento, João sabe bem que “ninguém o ama como Ele”. 

 

 

Alcoolismo: o papel de cada um

A vida de uma pessoa que sofre com a doença do alcoolismo não é fácil. Família, amigos e a comunidade também são afetados. Quando o álcool entra no lar, todos que ali vivem acabam impactados e sofrem as consequências desse mal.

Prova disso é que mais de 3 milhões de pessoas de diferentes idades morrem por ano por conta do alcoolismo no mundo, de acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS). O uso nocivo de álcool é um fator causal para mais de 200 doenças e lesões. Além disso, 5,1% da carga mundial de doenças e lesões são atribuídas ao consumo de álcool, conforme calculado em termos de Anos de Vida Perdidos Ajustados por Incapacidade (DALY, sigla em inglês).

“Ninguém pode dizer: ‘esse problema não é meu’, pois esse problema já é nosso. Fisicamente ou dentro de casa, cada um de nós conhece os estragos causados pelo uso de drogas”, como já comentou Padre Reginaldo Manzotti em seu perfil no Facebook.

Qual o papel da Igreja católica no combate às drogas?

A Igreja se dedica a apoiar pessoas com problemas com álcool e as suas famílias. Em nota publicada no site, a Conferência destaca que o papel da Igreja é em amplas frentes, passando desde a prevenção até o acolhimento e recuperação.

“A Igreja Católica, outras instituições religiosas e particulares, por meio de casas terapêuticas, demonstram o compromisso com a superação da dependência química e recuperação dos vínculos familiares e sociais ao acolher, cuidar e dar oportunidade de vida nova a milhares de adolescentes, jovens e adultos através da espiritualidade, do trabalho e da vida de comunidade”.

Diariamente, a Obra Evangelizar recebe pedidos de ajuda, por meio de intenções de oração e do Aconselhamento Espiritual. Outra maneira de buscar apoio é por meio de instituições especializadas, como o Alcoólicos Anônimos.

O que é o A.A?

 

Em 2019, uma pesquisa da Vigitel apresentou que o padrão de consumo de álcool excessivo no Brasil ultrapassa os 18%. O Alcoólicos Anônimos ou A.A. é uma irmandade de homens e mulheres, que não tem fins lucrativos, proporciona o compartilhamento de experiências, forças e esperanças dos alcoolistas, a fim de que seja possível sua recuperação plena. Conta com o apoio de outras instituições, inclusive a Igreja Católica. A premissa do A.A. é ajudar os irmãos que precisam.

Papa Francisco, em 2014, enfatizou essa relação próxima entre a Igreja e a recuperação. “Oportunidades de trabalho, educação, desporto, vida saudável: este é o caminho da prevenção da droga. Se forem realizados, não há lugar para a droga, para o abuso de álcool, para outras dependências”, prosseguiu. Francisco elogiou ainda o papel da Igreja Católica, que “não abandonou os que caíram na espiral da droga”, afirmou Francisco.

O A.A. acredita na espiritualidade como forma de cura e libertação, por meio da conversa constante, do apoio, do passo a passo, do perdão. Para isso, trabalha no convívio entre os indivíduos sóbrios ajudando outros a alcançarem a sobriedade, um dia de cada vez, em busca do controle. Os A.A.s de muitas cidades estão na própria Igreja, que fornece o espaço para as reuniões e grupos de apoio. Caso a sua cidade não conte com uma rede como essa, você pode encontrá-la pela internet no site: www.aa.org.br.

Além do A.A., outras instituições também podem auxiliar no controle da doença, incluindo os Centros de Atenção Psicossocial ou a própria Assistência Social do município. Ambas as instituições são gratuitas e podem auxiliar a pessoa a ter sua vida de novo. E como vai valer a pena!

 

Leia mais sobre o assunto:

> Bebidas alcóolicas: histórias e olhar da vida dos familiares 

> Problemas com drogas e bebidas alcoólicas: como a família deve lidar?

 

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Comentários

  • Kênia
    Um exemplo de vida e de acolhimento...
  • Sônia Albano
    Maravilhoso!!!! Pena que tão pouca gente saiba que o alcoolismo é uma doença. O poder da indústria e a hipocrisia das famílias não deixa esse grande mal aparecer. A solidão de uma mãe que vê um filho se perdendo não consegue fazer nada…..
  • Kaio
    Maravilha. Parabéns.
  • Kaio
    Mensagem esta de puro altruísmo, informações estas com muita empatia com os alcoólatras que ainda sofrem com a doença do alcoolismo . Segundo as estatísticas 1% da população mundial consegue parar sozinha de beber e apenas meio por cento se mantém sóbrio até a morte. A pergunta que fica, é. Serei eu?... portanto se vc. Quer continuar bebendo o problema é seu. Agora se vc.quer parar de beber o problema é nosso. ALCOÓLICOS ANÔNIMOS. Não tenha vergonha de ser feliz.

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