De Zé Ninguém a José Alguém

De Zé Ninguém a José Alguém

Laércio José do Amaral – Psicólogo Clínico (CRP 08/25488)

Convidado a contribuir neste espaço com alguns escritos do vigente ano de 2021, percebi uma feliz coincidência ao saber que este também foi instituído pelo Papa Francisco como o ano de São José, celebrando 150 anos da nomeação do Santo como Padroeiro da Igreja Católica.

Para mim, em particular, vejo o convite como uma “sincronicidade”, um evento auspicioso, uma vez que tenho José no meu nome de batismo, recebido como uma homenagem ao Santo, e aproveito tal sincronia para extrair algumas reflexões.

Antes, contudo, gostaria de alertar que as questões que pretendo trazer para este artigo estarão vinculadas à minha condição de cientista da mente humana como psicólogo clínico; logo os aspectos levantados partirão desse ponto de observação. Assim sendo, os comentários a respeito de figuras e eventos bíblicos estarão envolvidos pelo caráter simbólico e psicológico de suas representações, e para manter a coerência do propósito deste texto, evitarei inserções de cunho teológico.

Também penso ser importante comentar que da perspectiva da psicologia nossas crenças se constituem em “realidades psíquicas”. Isso significa que mesmo que muitos pressupostos espirituais e religiosos não tenham respaldo em aspectos concretos da realidade física e material, ainda assim impactam e detêm significado para a vida anímica e emocional da pessoa detentora dessas crenças.

Dito isso, voltemos nossa atenção à narrativa de São José. Segundo o relato bíblico, Ele se casa com Maria, mas ainda “antes de coabitarem” Ela engravida: “concebeu por virtude do Espírito Santo (Mateus 1,18)”. Na sequência do relato, José resolve rejeitá-la secretamente, mas um anjo do Senhor Lhe aparece em sonho e revela a intenção divina, o que faz com que Ele compreenda e respeite o mistério divino.

Neste sentido, a gravidez de Maria, acontecida por um ato divino, não tem sustentação na realidade material, mas está composta dentro da realidade psíquica – ou simbólica – da pessoa que professa a fé cristã e também daqueles que entendem as passagens de livros sagrados como passíveis do escrutínio psicológico por conta destes personagens simbólicos. Tais personagens estão inscritos na mente humana como arquétipos (termo utilizado por Carl Gustav Jung, médico e psiquiatra suíço, criador da Psicologia Analítica) e referidas imagens arquetípicas podem nos inspirar a ampliar nossas visões de mundo e, inclusive, sanar muitos de nossos problemas emocionais e psicológicos.

Aproveito tal menção para referenciar o “Zé Ninguém” que utilizei no título desse texto, a partir de um dos livros (Escuta, Zé Ninguém!) de Wilhelm Reich, médico e psicanalista austríaco, contemporâneo de Sigmund Freud (criador da psicanálise) e também de Carl Jung, citado acima. Nesse pequeno livro, Reich procura interpretar a situação do cidadão comum diante das garras do fascismo e do nazismo (que levou, inclusive, à ascensão de Hitler e Mussolini), ou seja, de instâncias poderosas e autoritárias.

Reich dá ênfase aos processos que levam à manipulação da mente das pessoas e do povo em geral por meio de ideologias autoritárias, em contraposição às posturas libertárias, que prezam as liberdades dos indivíduos e dos grupos sociais. O argumento central de Reich é que a pessoa comum (“Zé Ninguém”), ao procurar proteção para sua própria vida, termina prisioneira dos ditos poderosos, que determinam o que é a verdade, quais são as regras de sobrevivência, e impõem uma ordem pessoal e coletiva, que invariavelmente leva à distensão do tecido social e à geração de violências, as mais variadas.

William Reich também argumenta, em outro de seus livros (A psicologia de massas do fascismo), que há uma estrutura autoritária dentro de cada um de nós e que essa condição presente em nosso inconsciente, teme a liberdade, sendo exatamente essa a condição que faz com que algumas pessoas, ou grupos, apoiem ideologias autoritárias e se tornem, elas mesmas, pequenas ditadoras (muitas vezes dentro da própria casa, com sua própria família).

Voltando agora ao personagem José a que nos referimos anteriormente, o que teria ele a nos dizer? Quais arquétipos ele representa e que podem nos inspirar? Que reflexões o personagem bíblico a quem me refiro aqui como “José Alguém” pode nos trazer para ampliarmos o repertório de nossa inteligência emocional?

Neste ano dedicado ao Santo, cada mês é também dedicado a uma virtude e agora em Maio, José aparece como Modelo de Trabalhador, ou seja, nos instiga a olharmos com carinho para nossas atividades laborais. Você é feliz com o que você faz ou simplesmente se acostumou a fazê-lo? Você dá valor aos seus potenciais, às suas aspirações e até aos seus sonhos, com relação à atividade profissional? Você oportuniza a si mesmo condições para o desenvolvimento de seus talentos? E mais do que isso, como pessoa consciente da importância do trabalho para a sociedade, você também luta, junto aos seus pares, por direitos trabalhistas e pela condição de pleno emprego para todas as pessoas?

Padre Luiz Di Lascio, vigário paroquial da Basílica de Nossa Senhora do Carmo, em Campinas São Paulo, devoto de São José, comenta que “Deus não escolheu uma pessoa rica para cuidar de Jesus. Escolheu um carpinteiro e criador de ovelhas. Por isso é válida a reflexão do que é necessário para termos equilíbrio e paz no mundo, ainda mais num momento tão difícil como este que estamos vivendo”.

Com a precarização dos direitos trabalhistas e com os níveis de desemprego mais altos dos últimos tempos, é possível equilíbrio e paz no mundo – ou mesmo em nosso País –, como citado acima?

Seguindo nesta via de reflexão, Padre Di Lascio comenta ainda que José “aceita a Sua missão de cuidar da família e do Filho de Deus. São José era um homem que valorizava a figura feminina. Foi um pregador da esperança. Prezava por uma sociedade solidária, e era conhecido por ser um homem trabalhador. Era carpinteiro, atuava com o manuseio da madeira, da pedra e do ferro, e passou Seus ensinamentos a Jesus. Vejo o silêncio d’Ele como convite à reflexão”.

Ora, é fundamental que compreendamos que ainda vivemos numa sociedade bastante manchada pela violência, principalmente contra os mais vulneráveis, incluindo pobres, homossexuais, indígenas, crianças, mulheres, imigrantes, etc. e quando José aceita um filho que não gerou (por isso é considerado o pai adotivo de Jesus) e O cria como Seu, Ele nos inspira a olhar para todos e para todas as crianças, para além de nossos filhos “legítimos”.

Quando Padre Di Lascio diz que “José valorizava a figura feminina” e “prezava por uma sociedade solidária”, nos mostra o quanto essa figura pode nos inspirar a não só revermos conceitos arcaicos e preconceituosos com relação à mulher, mas também em nos engajarmos na luta comum por uma sociedade mais justa e fraterna, em todos os âmbitos.

Outro ponto que gostaria de destacar na fala de Padre Di Lascio é a menção de que José “passou Seus ensinamentos a Jesus” e que vê “o silêncio d’Ele como um convite à reflexão”. Ainda sob a ótica do arquétipo de José, poderíamos refletir sobre a forma e o conteúdo de nossa relação com as crianças, sejam nossos filhos ou não. A impressão que temos desse personagem é que suas qualidades também estão vinculadas à maneira como Ele passava seus ensinamentos e isso está diretamente ligado ao seu silêncio, ou seja, à forma tranquila como Ele se manifesta.

Atualmente, é comum os pais não terem tempo para estar com seus filhos, nem para “passar os ensinamentos de forma tranquila”, agindo ora com dureza excessiva, ora com displicência, ocasionando medo e insegurança nas crianças.

Trinta anos de experiência com psicologia clínica me mostram que ainda confundimos autoridade com autoritarismo e que ainda nos falta muito dessa tranquilidade no trato com as crianças. Uma criança violentada, seja física ou emocionalmente, levará marcas para sua vida adulta e, em muitos dos casos, reproduzirá as próprias violências sofridas, quer de maneira mais clara na relação com os outros, ou de forma mais inconsciente, às vezes reproduzindo essa violência contra ela mesma, como na depressão, por exemplo. Dessa forma, mais uma vez, nosso personagem José nos convida à reflexão, para repensar valores e atitudes.

Para finalizar, trago a inspiração do poeta Borges de Garuva que afirma que “de larva a borboleta há um trajeto infinito”. Trazendo ao nosso contexto, podemos igualmente dizer que há um infinito existente entre o Zé Ninguém, aquele sujeito alienado e inconsciente de si mesmo, e o José Alguém, consciente de seu potencial, mas esse infinito pode ser igualmente substância de nossas transformações para além dos limites impostos e autoimpostos. Sendo assim, desejo que a figura emblemática de São José possa servir de inspiração para nos conduzir a uma vida plena de consciência, realização e significado.

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