Na Bíblia existem muitas coisas escritas com estilos e linguagens diferentes. Por isso, algumas vezes certos versículos nos apresentam algumas expressões que parecem de difícil entendimento, mesmo com releituras. Encontramos um desses casos no Evangelho de Mateus, no capítulo 8, nos versículos 18 ao 22:
Certo dia, vendo-se no meio de grande multidão, ordenou Jesus que o levassem para a outra margem do lago. Nisso aproximou-se dele um escriba e lhe disse: “Mestre, eu te seguirei para onde quer que fores”. Respondeu Jesus: “As raposas têm suas tocas e as aves do céu, seus ninhos, mas o Filho do Homem não tem onde repousar a cabeça”. Outra vez um dos seus discípulos lhe disse: “Senhor, deixa-me ir primeiro enterrar meu pai”. Jesus, porém, lhe respondeu: “Segue-me e deixa que os mortos enterrem seus mortos”.
Talvez já tenhamos lido ou escutado este trecho do Evangelho diversas vezes. Mas sempre fica uma dúvida: o que será que Jesus disse realmente?
Em princípio, facilmente conseguimos entender que esse episódio retrata duas pessoas que desejavam seguir Jesus. A primeira pessoa parece ser um escriba muito decidido em levar a sério o seguimento ao Mestre, a ponto de declarar que iria onde Jesus fosse, não importando quão longe isso pudesse ser ou o que viesse pela frente. O Senhor, porém, parece que o responde colocando dificuldades, revelando que não tinha onde sequer repousar a cabeça. Mas por que essa resposta?
Jesus sabia que o coração daquele escriba não desejava a radicalidade evangélica que o discipulado propõe e por isso Ele teria respondido dessa forma dura, para deixar claro que o caminho não é feito de luxo ou tranquilidade, mas de desafios e de desapego das coisas deste mundo.
Os Padres da Igreja, ou seja, os primeiros teólogos que fundamentaram a fé cristã, perceberam que essa passagem faz eco de uma outra muito conhecida, que é a do Jovem Rico (cf. Mateus 19,16-23). Muito provavelmente, assim como no caso do Jovem Rico, Jesus sabia que o coração daquele escriba não desejava a radicalidade evangélica que o discipulado propõe e por isso Ele teria respondido dessa forma dura, para deixar claro que o caminho não é feito de luxo ou tranquilidade, mas de desafios e de desapego das coisas deste mundo. Já São Gregório Magno (Papa e Doutor da Igreja – 590 d.C. até 604 d. C.) vê nas figuras da raposa e das aves uma analogia da soberba humana, ou seja, em sentido moral a soberba tinha mais lugar no coração daquele homem do que Jesus, tornando impossível que ao menos recostasse a cabeça nele.
A segunda pessoa, aparentemente também muito decidida, desejava seguir Jesus, mas pediu ao Mestre que permitisse que primeiro ele pudesse enterrar seus pais antes de iniciar a vivência de sua vocação. A resposta de Jesus é um pouco desconcertante: Segue-me e deixa que os mortos enterrem seus mortos.
Em uma leitura rápida, sem levar em consideração os pormenores, parece que Jesus deixou aquela pessoa tão cheia de boa vontade em um completo desamparo. Mas será que Jesus foi rude ou inflexível? Por que Jesus não se compadeceu dos pais daquele jovem que talvez fossem idosos e precisassem de cuidados especiais?
A chave para entender esse episódio pode estar no significado da expressão “enterrar os pais”. Para aquele povo, cuidar dos pais até a morte e enterrá-los era um imperativo, como que um dever que deveria ser levado a termo a todo custo (cf. Êxodo 20,2 e Deuteronômio 5,16). Isso significa que esse homem não pediu para Jesus deixá-lo voltar e enterrar os pais que já tinham falecido, mas na verdade estava solicitando permissão para esperar mais alguns inúmeros anos, para só depois ir atrás de viver a própria vocação. Em outras palavras, foi um pedido de adiamento do chamado de Deus a fim de resolver as coisas primeiro, mesmo sendo Deus capaz de resolver todas as nossas coisas.
A resposta de Jesus quer ser clara ao afirmar que a vida verdadeira está em quem segue o caminho do Evangelho. É Jesus quem venceu toda morte e é Ele quem pode dar vida em plenitude, vida feliz, completa e realizada. Adiar isso seria como que preferir estar morto espiritualmente, ou seja, estar apegado ao que é apenas mortal como já estivéssemos “mortos”, e ironicamente, enterrando outros mortos.
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