O número impressiona: quase três mil pessoas morrem todos os anos à espera de um transplante de órgãos no Brasil, de acordo com a Associação Brasileira de Transplante de Órgãos. Muitas dessas vidas, contudo, poderiam ser salvas. As dúvidas e os medos a respeito do tema ainda representam grandes obstáculos.
Um estudo recente da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) identificou três motivos principais para essa alta taxa de recusa no país: incompreensão da morte encefálica, falta de preparo da equipe médica para fazer a comunicação sobre a morte do enfermo e religião.
Um deles, como se vê, está relacionado à fé. É que ainda persiste certa hesitação entre os cristãos que não sabem ao certo o que a Bíblia tem a dizer sobre o assunto. E mais: se doar uma parte do corpo, ainda que após a morte, representa algum tipo de pecado. Mas é justamente o oposto, como explica o Padre José Neto, de Ceará-Mirim, RN.
Primeiramente, é importante entender que a doação consiste num procedimento médico no qual alguém, por livre iniciativa, doa um órgão ou uma parte dele em benefício de outra pessoa que esteja precisando. Ou seja: pode acontecer em vida. Como é o caso da medula óssea, o exemplo mais conhecido.
A doação após a morte acontece com órgãos vitais, como o coração e abrange ainda córneas, ossos e até tecidos. Isso é possível quando a pessoa manifesta esse desejo ainda em vida ou a família autoriza a realização do procedimento.
Se a prática já é conhecida e representa um gesto de amor, por que, então, a resistência? De acordo com o Padre José Neto, essa insegurança tem ligação direta com o falso entendimento de que a doação de órgãos pode interferir na ressurreição do corpo no último dia:
“Não fiquem admirados com isto, pois está chegando a hora em que todos os que estiverem nos túmulos ouvirão a sua voz e sairão; os que fizeram o bem ressuscitarão para a vida, e os que fizeram mal ressuscitarão para serem condenados” (João 5,28-29).
Padre José Neto é claro: a doação em nada interfere na ressurreição, que não está presa à ideia da carne. Pelo contrário, conforme Filipenses 3,21: “Que transformará o nosso corpo abatido, para ser conforme o seu corpo glorioso, segundo o seu eficaz poder de sujeitar também a si todas as coisas”.
O religioso vai além. Ele afirma que muito mais que um gesto de amor, a doação de órgãos é um gesto de caridade e está em consonância com três princípios bíblicos: empatia, altruísmo e misericórdia.
“Por mais que a Bíblia não seja clara em relação ao tema, temos o exemplo de Jesus, que não doou apenas um órgão, mas sim a sua própria vida em favor da nossa”, reforça ele.
De acordo com Rogéria Medeiros, que coordena a Central Estadual de Transplantes do Rio Grande do Norte, “fazer essa fila andar depende diretamente da aceitação e da autorização dos familiares. Esse ato impacta não só na vida de quem mora no próprio Estado, mas de muitos brasileiros, já que é possível o envio de órgãos para todo o Brasil”. O deslocamento aéreo é feito em parceria com a Força Aérea Brasileira (FAB).
A partida precoce e comovente de um jovem de 24 anos, que teve morte encefálica por ferimento de arma de fogo e a decisão da sua família pela doação de órgãos fizeram com que a vida de um homem de 44 anos fosse salva. O caso recente foi acompanhado de perto pelos médicos Marcelo Cascudo, cardiologista, e Madson Vidal, anestesiologista. Tratava-se de um paciente com muitas limitações e que estava em fase final.
“O intervalo entre o momento em que o coração parou de bater na vítima e voltou a bater no tórax do receptor foi de 1h45. O transplante cardíaco é muito dependente do tempo. É por isso que exige toda uma logística, com batedores que vão buscar, para abrir caminho para que esse coração possa chegar o mais rápido possível ao seu destino”, explica Marcelo, que complementa: “Se a isquemia for muito longa, pode ser que o coração não sirva mais”.
Madson Vidal reforça a importância que a cirurgia tem para salvar vidas de pacientes que necessitam de um transplante de coração. Segundo ele, as condições dessas pessoas são muito ruins e, às vezes, chegam a morrer sem conseguir a doação. Madson, aliás, coordena uma organização não-governamental voltada a auxiliar crianças cardiopatas: a Amico.
Como explica o anestesiologista, o ato de doar é fundamental: é a chance de salvar uma vida.
“Eu costumo dizer que a doação de órgãos talvez seja o ato mais nobre, de solidariedade, de caridade, que um ser humano pode fazer por outra pessoa. A partir do gesto dessa família, por exemplo, baseado nos atos de Jesus Cristo, ela teve amor ao próximo e mudou a história de um homem e da sua família”, afirma o médico.
Além do argumento cristão, a psicóloga Giovana Bonini explica o quanto a caridade pode ser benéfica para a nossa vida. De acordo com ela, os benefícios incluem “uma sensação de satisfação e felicidade, por meio dos neurotransmissores dopamina e serotonina, que estão associados a sentimentos de contentamento e bem-estar”.
Como explica a profissional, isso ocorre porque fazer caridade nos permite ajudar os outros e promover uma diferença positiva em suas vidas, o que pode ser uma fonte de realização pessoal.
Ainda, como conta Giovana, fornecer apoio social a pessoas em necessidade, como é o caso da doação de órgãos, ativa regiões do cérebro ligadas ao cuidado parental, o que está associado a efeitos positivos para a saúde. Efeitos capazes de transformar a vida não só de quem recebe, como também de quem doa – mesmo que a caridade se confirme apenas após o fim da vida.
No Brasil, há critérios pré-estabelecidos para uma pessoa receber um transplante, conforme a Associação Brasileira de Transplante de Órgãos. Cada tipo de órgão pode ter algumas regras diferenciadas. No caso do coração, a fila de espera é estabelecida, principalmente, de acordo com a gravidade do quadro de saúde do paciente e organizada pela Secretaria Nacional de Transplantes, do Ministério da Saúde.
Existe uma única fila, que inclui tanto pacientes de hospitais públicos quanto privados. Cabe ao médico responsável inscrever seu paciente na lista. Quando um coração fica disponível para doação, é necessário verificar por meio de exames se o candidato é compatível com o órgão, além de outras considerações.
O apresentador Fausto Silva, também conhecido como Faustão, recebeu no último dia 27 um novo coração e teve alta hoje, 10 de setembro. Ele gravou um vídeo para informar que agora começa uma nova fase de recuperação.
Muito agradecido à família do doador pelo gesto tão nobre, Fausto afirma que sua missão agora é conscientizar as pessoas para que o Brasil se transforme no país com maior número de doações no mundo. Ainda enquanto aguardava pelo órgão, sua família iniciou uma campanha de conscientização no Instagram. No @faustaodomeucoracao pessoas transplantadas compartilham suas histórias inspiradoras.
Confira um trecho do que ele disse no vídeo:
“Alô galera, já saí. Estou em casa, agora iniciando uma nova fase. Mas antes, de novo: agradecimento eterno a cada um de vocês que rezaram, fizeram mensagens de solidariedade e apoio. Tudo isso me ajudou muito nessa luta pela vida. Agradecer à família do doador, a quem não tenho palavras. Vou rezar por eles pelo resto da minha vida.”
Deixe seu comentário sobre o que você achou do conteúdo.
Assine nossa newsletter, receba nossos conteúdos e fique por dentro
de todas as novidades.