Presentes de Deus, filhos são uma responsabilidade em todos os aspectos da vida, inclusive em relação à espiritualidade da vida gerada. Porém, nem sempre trazer alguém ao mundo depende apenas da própria vontade dos pais. O que fazer quando aquela vida é interrompida ainda durante a gravidez, sem se entender os motivos? O que a Igreja recomenda nesses casos? Como as famílias podem lidar com esse luto e como a sociedade deve acolhê-la?
Você sabe o que significa a expressão “bebê arco-íris”? Cristiane Carneiro, 35 anos, criadora do perfil no Instagram com este nome (@umbebearcoiris) traz a explicação logo nas primeiras publicações: “Todo mundo sabe que o arco-íris vem após a chuva e aparece quando o sol está se abrindo novamente, deixando para trás as nuvens escuras. Assim são os bebês chamados de arco-íris. Eles vêm após a chuva dos dias cinzentos vividos pelos seus pais. São os bebês que chegam após uma perda gestacional ou depois de um longo tempo de espera na tentativa de engravidar”.
A autora do perfil esclarece ainda que o arco-íris não precisa ser necessariamente um bebê vindo de uma gestação. Pode ser um filho adotivo ou um novo projeto na vida da mãe e do casal. “No meu caso, o meu arco-íris no momento é esse Insta, onde estou depositando todos os meus sentimentos enquanto espero o que Deus já tem planejado pra mim lá na frente”, conclui no post.
Cristiane criou a página, em fevereiro deste ano, para falar sobre as perdas gestacionais que enfrentou, o diagnóstico de trombofilia e trazer mais informações sobre esses assuntos. Inicialmente, teve medo da exposição e de possíveis julgamentos, mas se enganou. Hoje, a fisioterapeuta avalia a experiência como positiva, com muita troca de conhecimento, mensagens, relatos, acolhimento e aconselhamento. “Percebi que escrevendo, compartilhando, trocando informações com quem também estava passando por algo parecido faria a passagem por esse processo ser mais leve”, conta.
“Mesmo entendendo o que estava acontecendo demorou para a ficha cair”
Cristiane é mãe de Enzo, de cinco anos. Em 2017, ela e o marido, Rodrigo, foram pegos de surpresa com a descoberta da segunda gravidez. Na primeira ultrassonografia, com nove semanas, o bebê estava com tamanho de oito semanas e sem batimentos cardíacos.
No exame seguinte, a morte foi confirmada. “Mesmo entendendo o que estava acontecendo demorou para a ficha cair e após outro ultrassom foi confirmado o óbito fetal. O baque foi enorme. Entrar no consultório pra ouvir o coraçãozinho e sair com um exame que constatava o óbito foi horrível. Além disso, avaliando os riscos optei por esperar ver se meu corpo passava pelo processo para expelir naturalmente, mas isso não aconteceu”. Cristiane sentiu cólicas, enjoos e mal estar até fazer uma curetagem, procedimento médico que tem como objetivo retirar material placentário ou endometrial da cavidade uterina com um instrumento chamado cureta.
O trauma e o desgaste fizeram com que a primeira sensação ao descobrir a terceira gestação fosse de medo. “Uma contenção de sentimentos antes dos primeiros exames, já que não tivemos um desfecho positivo anteriormente”, recorda. Dessa vez, no primeiro exame, o casal conseguiu ouvir o coração do bebê. Pouco tempo depois, a mãe de Enzo teve um sangramento e precisou ficar em repouso. Mesmo tomando todos os cuidados, a fisioterapeuta teve uma nova perda gestacional. “Passar por isso duas vezes não é fácil, mas o que me sustenta é a fé que tenho em Deus, saber que posso chorar, ficar triste mas que Ele não me desampara e me sustenta. Também busco ajuda com terapia pra conseguir lidar com coisas que fogem do meu controle emocional”, enfatiza.
Cristiane Barros (Acervo pessoal)
Depois das duas perdas e de muito exames, ela foi diagnosticada com trombofilia, condição em que a pessoa tem maior facilidade para formar coágulos de sangue, aumentando o risco de problemas graves como trombose venosa ou AVC, por exemplo. A trombofilia pode ser hereditária ou adquirida e na maioria das vezes a pessoa não sabe que possui a condição até ter alguns sinais como embolia pulmonar, ou abortos de repetição, como foi o caso de Cristiane.
A psicóloga Fernanda Rangel explica que o luto gestacional e neonatal é invisível, já que ainda não é muito falado ou valorizado. Isso porque entende-se que como não houve convivência, não houve história, mas não é essa a realidade. “O sofrimento pela perda do filho não está relacionado ao tempo de gestação ou de vida do bebê, mas sim ao significado que o filho tem para aquela mulher”, ressalta. É importante entender que a dor da perda de um filho está relacionada ao que não será experienciado, ou seja, tudo aquilo que foi pensado e planejado para viver junto ao bebê e que não será possível de concretizar.
Fernanda também aborda o tema de forma informativa no Instagram (@psiferangel). Durante oito anos, ela trabalhou em uma maternidade pública do Rio de Janeiro, onde se deparou com mães que perdiam os filhos ainda na barriga ou pouco tempo depois do nascimento. Ver de perto o sofrimento e os desdobramentos na vida dessas mulheres fez com que ela iniciasse o trabalho focado em perda gestacional e neonatal com o objetivo de “acolher, informar e orientar as mães de anjos”.
“São muitos os sentimentos que as mulheres precisam lidar, como a culpa, raiva, tristeza, entre tantos outros que impactam a vida delas e é justamente aí que a psicologia auxilia, na elaboração do luto, com o objetivo de auxiliar a mulher a ressignificar a história vivida”, declara.
Fernanda Rangel, psicóloga (Acervo pessoal)
Cristiane e Fernanda dedicam alguns tópicos dos perfis às frases que costumam ser ditas e que incomodam e diminuem o sentimento das mães. A fisioterapeuta diz que é muito difícil lidar com uma perda, principalmente a gestacional, já que é um momento em que o assunto seria ‘vida’, e não ‘morte’. Assim, muita gente não sabe como reagir, mas algumas frases além de não consolar, aumentam a dor por desconsiderar o filho e a maternidade.
Veja alguns exemplos:
• “Você é nova”
• “Daqui a pouco você terá outro”
• “Pelo menos foi no comecinho”
• “Pelo menos você já tem um filho”
• “Deus quis assim”
• “O bebê podia ter algum problema”
Não sabe como reagir? A orientação é se mostrar disponível para ouvir e perguntar se aquela mãe está precisando de alguma coisa. Saber que ela tem com quem contar faz toda diferença.
“Queremos honrar quem partiu”
A empatia após o luto neonatal é um dos assuntos abordados no livro “Até breve, José”, da jornalista e escritora Camila Goytacaz. O projeto é dedicado ao filho José, que morreu 11 dias após o nascimento. “Eu escrevi o que gostaria que alguém tivesse me dito, uma amiga que, amorosamente, me diria: ‘Vai ficar tudo bem. Tome o seu tempo para se despedir dele e vá viver também’”, disse durante conferência do TEDx São Paulo.
O depoimento de Camila está disponível no YouTube (confira abaixo) e fala também sobre outros sentimentos que as mães podem sentir nesse momento, reações e esperança. “Não queremos esquecer, queremos lembrar. Queremos honrar quem partiu”, reforça.
É comum se referir aos bebês que morreram durante a gestação ou pouco tempo após o nascimento como “anjos”. A figura do anjo tem uma conotação no imaginário religioso associada, principalmente, com a pureza. Para a Igreja Católica, anjos e seres humanos possuem naturezas distintas, assim, não começamos “anjos” durante a gestação e depois nos tornamos “seres humanos”, mas a metáfora está relacionada à falta de pecados dos bebês.
“O anjo é puro porque não cometeu pecado, assim como imaginamos os bebês que foram perdidos durante a gestação. Mais do que uma questão do campo doutrinal, essa questão é um modo de se relacionar com o trauma da perda e, quanto a isso, deveríamos ser benevolentes e acolher essas mães e pais que sofrem com a perda dos filhos deles”, aponta o Padre Diogo Costa Fernandes, da congregação dos Jesuítas, destacando ainda que Jesus, principalmente pela Encarnação e Ascenção, assumiu a humanidade e a elevou à Trindade.
“Ele nos predestinou para sermos Seus filhos adotivos por meio de Jesus Cristo, conforme a benevolência de Sua vontade” (Ef 1,5).
Pe. Diogo Costa Fernandes
O padre reforça que é fundamental não diminuir a dor da pessoa que sofre. Para os pais, viver o luto é uma etapa necessária para fazer com que a dor e o sofrimento sejam ressignificados.
Em relação às celebrações que podem ser realizadas, o Padre Fabiano Maurício Dantas, da paróquia Nossa Senhora da Conceição, de Jardim do Seridó (RN), pondera que “a liturgia da Igreja prevê exéquias [honras fúnebres] de crianças falecidas em tenra idade, com formulários próprios. A Missa, no entanto, é sempre um ato de louvor a Deus, que criou aquela criança e a salvou pelo batismo. Nesse caso [que não há batismo], serve mais como um momento de oração pelo conforto da família enlutada do que como sufrágio pelo falecido, uma vez que a criança que nunca cometeu pecados não necessita dele”.
“Pode-se reunir a família ou a comunidade para rezar. Quando possível, pode-se realizar o velório, a Missa de sétimo dia também é outra opção disponível. Mas não podemos esquecer que a Celebração Eucarística e os atos litúrgicos são manifestações de nossa esperança e fé na ressurreição, não são homenagens às pessoas que partiram.
Na Missa e na ação litúrgica, fazemos memória da Vida, Paixão, Morte e Ressurreição de Jesus, que é a razão da nossa fé e esperança”, finaliza o Padre Diogo.
O Novo Testamento, principalmente os Evangelhos, ensina que Deus está conosco, caminha ao nosso lado mesmo que em momentos de dor se possa não sentir essa presença. Os Evangelhos também apontam para a Ressurreição de Jesus, razão de nossa esperança.
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