“Se eu tentasse definir o quão especial tu és pra mim, palavras não teriam fim. Definir o amor não dá, então direi apenas obrigado. E sei que entenderás”.
Foi com a música “Eternos Amigos”, da banda católica Anjos de Resgate, que a família de Raimundo Vasconcelos se despediu dele bem no dia de São Pedro, 29 de junho, “pedra alicerce da Igreja”, após cinco anos de tratamento contra câncer, em Natal (RN), no ano de 2007. A cena é descrita pela sua filha, Sara, com sentimentos que passeiam pela saudade, amor e uma paz difícil de ser explicada em um momento tão difícil.
Para a jornalista, essa paz era a presença de Deus em forma de força e consolo, companhia que ela já conhecia e cultivava desde criança, principalmente devido aos ensinamentos do seu pai, mas que ganharia ainda mais espaço na sua vida para enfrentar a dor e todo o processo de luto pela separação.
“Lembro que esquecemos que devia cantar baixo, a ala do hospital toda ouviu. A sensação era de que tinham anjos conosco entre aquelas cortinas, o sentimento era de uma paz, apesar de tudo”.
Fernanda Paiva Stocco, analista de TI, também conhece a sensação de ser amparada pela paz divina no momento mais difícil da sua vida. Em 2005, seu pai teve um infarto fulminante em Curitiba (PR) e ela passou a ser o porto seguro para a família e para a própria vida, pois logo depois descobriu que estava grávida do segundo filho e muitos desafios e provações ainda estavam por vir.
Foi a partir desse momento que se voltou mais à Igreja e aos ensinamentos cristãos, inclusive em seu ambiente de trabalho, onde criou um grupo de estudo bíblico chamado Renascer. Hoje, mãe de três filhos e com a bênção do matrimônio na Igreja que tanto sonhava, ela trilhou um caminho de fortalecimento da fé, com busca pelo conhecimento, serviço e prática no dia a dia.
Fernanda Paiva Stocco e Pedro
O que viveu com o pai norteia seus dias e decisões, com um carinho que foi transformado em cuidados com ela mesma, com a família e com os amigos. Ela costuma ser chamada para apoiar pessoas que estão passando por situações parecidas, de morte de familiares.
“Às vezes, a gente não tem palavras adequadas para dizer, mas o que as pessoas mais precisam é de um abraço, de apoio, de alguém que mostre que você pode contar. Hoje eu sei que aquele amparo e força que eu sentia, tão inexplicáveis, era a ação do Espírito Santo”, compartilha.
Além do laço de força e da importância da fé para viver o luto, existem outras características ou fases que são comuns na história de Sara e de Fernanda, assim como de outras filhas cujos pais já estão na vida eterna. É o que explica a psicóloga Paula Leverone , que tem capacitação em luto e é uma das fundadoras do Trilhar – Instituto de Luto.
Psicóloga Paula Leverone
A profissional explica que quando se fala de pai, na maioria das vezes trata-se uma das principais figuras de apego na vida de uma pessoa e que tem a função de oferecer uma base segura para que a criança possa explorar o mundo, crescer, se desenvolver e construir outros vínculos e papéis ao longo da vida.
“Cada vínculo é único, mas a relação de pai e filha ou filho costuma ser carregada de significados, crenças e valores que levamos para toda a vida e que possuem um papel central na construção da personalidade e da relação com os outros e com o mundo”, afirma.
É por esses laços construídos que alguns sentimentos são tão presentes quando acontece a partida do genitor, como orfandade, desamparo e até de abandono.
Sara compartilhou algumas dessas angústias que passaram a existir e não eram presentes quando tinha o seu pai fisicamente ao lado, como muitas inseguranças e o medo, não racional, de não ter onde se amparar, mesmo sabendo que poderia contar com a mãe e com os irmãos. Por isso, desenvolveu alguns comportamentos, como a necessidade de trabalhar muito, preocupação excessiva com contas e outros que, com o auxílio da fé e da terapia, têm se equilibrado ao longo dos anos.
A psicóloga Paula Leverone explica que os adultos, diante de uma perda significativa, vivem uma quebra do mundo como lhes é conhecido, como entendem as coisas. A partir desse rompimento, é preciso recorrer aos recursos pessoais e/ou desenvolver novas ferramentas para poder reconstruí-lo.
Já no caso da criança e do adolescente, que estão em formação e tudo que pensam ainda está muito ligado a quem está por perto, é necessário que outro adulto, disponível emocionalmente, possa oferecer uma base de apoio e segurança no enfrentamento da perda.
“Perder uma figura como o pai, na infância, na adolescência ou na idade adulta, traz essa sensação de desproteção e insegurança comuns e naturais diante de uma perda tão importante”, reforça.
Quando o luto deve preocupar mais
Sara e seu pai
Assim como a morte faz parte da vida, a fase do luto, para quem se separa dos entes queridos, também é natural. Porém, é preciso entender as reações que fazem parte para saber diferenciar quando algo estiver passando do limite do que é considerado “saudável”.
No luto são esperadas as oscilações de emoções como chorar, se isolar, buscar memórias relacionadas ao ente querido que morreu, assim como, com o tempo, o movimento para restauração da vida, como retomar atividades antigas e buscar novas. Porém, “quando o enlutado paralisa em algum desses polos, por muito tempo e com uma grande intensidade, então temos o que chamamos de sinais de alerta para um luto complicado, ou seja, aquele que pode ter consequências ruins para a saúde mental”, alerta a psicóloga.
Ela acrescenta que o luto saudável deve poder contemplar esses dois movimentos (de perda e de restauração) sem uma ordem específica ou uma duração pré-determinada, mas sim oscilando e permitindo ao enlutado sentir a sua perda e enfrentar a vida que convida de novo a viver.
Outros sentimentos comuns no luto, de forma geral, são a tristeza, a raiva, o medo e a culpa. Porém, quando o assunto é luto, a psicóloga explica que toda forma de emoção é possível. “Os sentimentos mais vistos são muito relativos ao tipo de vínculo que existia, às circunstâncias da morte, à qualidade da relação e toda uma infinidade de fatores que influenciam. Essas e outras emoções acontecem de forma desorganizada, se misturam e oscilam ao longo de todo o processo.
Sobre a importância da fé no trabalho com o luto, Paula fala que há diversas contribuições. “Na minha prática clínica sempre investigo como se dá a relação com a fé, antes e depois da perda. É normal que por um momento a pessoa enlutada ‘brigue com Deus’, sinta raiva ou até se afaste para depois se reconciliar. Por outro lado, também vemos pessoas que não tinham uma religião e passam a buscar esse apoio, significados e conforto na espiritualidade. A relação com a fé também oscila durante o luto, mas de forma geral é de grande ajuda no enfrentamento do processo”.
Sara passou pela fase de sentir raiva e pensar em “romper com Deus”. “Eu não aceitava que meu pai morresse e durante os cinco anos da doença nem aceitava ter esse tipo de conversa, quando ele tentava me preparar, porque eu tinha muita certeza que ele ficaria curado. Minha dificuldade era pensar que a minha fé não o tinha curado. Hoje vejo que aquilo era sofrimento e egoísmo meu, pois ele estava sofrendo muito”.
Durante o período que cuidava do pai no hospital, Sara sempre ia à Igreja fazer suas orações, que sempre eram pela cura. Pouco tempo antes da morte, no entanto, ela lembra que teve uma conversa diferente com Deus, ajoelhada em frente ao Santíssimo.
“Pedi que Ele fizesse a Sua vontade”, lembra. Seu pai era um homem de muita fé, grande evangelizador sempre lembrado na cidade que vivia, Goianinha (RN), e é exatamente um dos trechos bíblicos que ele mais gostava que servem de luz para a sua filha ao pensar nesse processo: “Para tudo há um tempo, para cada coisa há um momento debaixo do céu. Tempo de nascer e tempo de morrer” (Eclesiastes 3,1-2).
O Padre Reginaldo Manzotti já escreveu em um artigo que “A vida é um dom de Deus, porém estamos de passagem neste mundo. Ao olharmos para a morte devemos valorizar a vida, como uma forma e oportunidade de nos prepararmos para a eternidade com o Senhor”.
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