O livro do Gênesis apresenta uma narrativa muito conhecida: dois irmãos, Caim e Abel, oferecem a Deus o fruto do próprio trabalho. Abel, pastor, entrega as primícias de seu rebanho; Caim, agricultor, oferece os frutos da terra. O texto sagrado diz que Deus acolheu a oferta de Abel, mas não olhou com agrado para a de Caim (Gn 4,1-16). O resultado, tão relatado, é que dominado pela inveja, Caim mata o irmão.
Esse relato, que marca a primeira vez em que a palavra “irmão” aparece na Bíblia, traz reflexões sobre a fraternidade, a sinceridade diante de Deus e a luta contra os instintos que, se não forem dominados, geram violência.
Uma pergunta que muito ocorre é: por que a oferta de Abel foi aceita e a de Caim não? O texto não dá uma explicação detalhada. Entretanto, a tradição bíblica ilumina o sentido. São João, na sua primeira carta, afirma: “Caim era do maligno e matou o irmão. E por que o matou? Porque suas obras eram más, e as de seu irmão, justas” (1 Jo 3,12).
Deus olha para o coração e não para objetos ou a matéria. A liturgia da Santa Missa expressa isso quando rezamos: “Recebei, ó Deus, este sacrifício, para glória do vosso nome, para o nosso bem e de toda a Santa Igreja”. Ou seja, o problema não é fazer a oferta, mas apresentar algo apenas externamente. É preciso ofertar com fé, gratidão e humildade. Nesse ponto, Abel foi íntegro, e Caim, não.
Antes da tragédia, Deus advertiu Caim: “Por que estás irritado? (…) Se fizeres o bem, não serás aceito? Mas, se não fizeres o bem, o pecado espreita à tua porta; cabe a ti dominá-lo” (Gn 4,6-7).
Papa Francisco, em homilia na Casa Santa Marta (13/02/2017), explicou que o ressentimento e a inveja crescem quando não são combatidos desde o início. Um pequeno ciúme pode se transformar em ódio mortal. “Tudo começa com aquele sentimento que te leva a separar-te, a dizer: ‘ele não é meu irmão’. E acaba na guerra que mata”, disse o Pontífice [L’Osservatore Romano, ed. port. 16/02/2017].
Segundo a Comissão Bíblica Pontifícia, a narrativa de Caim e Abel deve ser lida como um mito de origem (cf. A interpretação da Bíblia na Igreja). Ou seja, não é relato histórico literal, mas linguagem simbólica para explicar o mistério da violência humana.
O episódio mostra que, desde as origens, a fraternidade está ferida pela inveja e pelo desejo de autossuficiência. Crer em Deus sem acolher o irmão é uma fé vazia. O fratricídio cometido por Caim simboliza a ruptura das relações humanas e a incapacidade de viver como irmãos sem a graça divina.
Essa história leva também a pensar no perdão. Deus protegeu Caim, mesmo depois do que ele fez, com um sinal. A Bíblia mostra que Deus não guarda lembrança de nossos pecados: “Lançará ao fundo do mar todos os nossos pecados” (Mq 7,19). Para viver a reconciliação verdadeira, não se trata de apagar a memória, mas de não deixar que ela reacenda mágoas e divisões.
Por fim, a lição é: Deus não rejeitou Caim como pessoa. Ele rejeitou a atitude de seu coração. Abel ofereceu com fé. Caim, não.
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