Quando a Pastoral da Criança iniciou suas ações nas comunidades, nos anos 1980, um dos maiores desafios era combater a desnutrição infantil. Famílias tinham pouco acesso a alimentos variados, muitas crianças chegavam aos líderes com peso abaixo do ideal, e era urgente encontrar estratégias simples, acessíveis e eficazes para melhorar a alimentação das famílias. Foi nesse contexto que surgiu a multimistura, concebida como uma forma inteligente de enriquecer as refeições com alimentos regionais, nutritivos e fáceis de usar.
A proposta ganhou força com o livro Alimentação Alternativa (1988), no qual a Dra. Clara Takaki Brandão apresentou o princípio central: “a qualidade é dada pela variedade”. Ou seja, era mais nutritivo usar pequenas quantidades de muitos alimentos do que grandes quantidades de poucos ingredientes. A multimistura seguia esse conceito, orientando o uso de farinhas, farelos, sementes, frutas e folhas cruas para complementar a comida de costume. Para crianças desnutridas, acrescentava-se óleo após o preparo, com foco em aumentar a energia das refeições de forma simples e acessível.
Com o tempo, porém, a ideia original passou a ser reduzida em algumas regiões, dando origem à chamada tetramistura, composta apenas por farelo de arroz, farelo de trigo, pó da casca de ovo e pó da folha de mandioca. Essa padronização se distanciou do conceito original de variedade e levou muitas pessoas a entenderem a multimistura como um composto único, e não como parte de uma educação alimentar mais ampla.
Ao longo dos anos, a multimistura também passou a ser utilizada em muitos lugares como tentativa de tratar anemia — algo que a Pastoral da Criança não recomenda. A própria instituição, em parceria com universidades, conduziu pesquisas importantes que mostraram os limites desse uso. A mais significativa ocorreu em 2002, em Pelotas (RS), e analisou a multimistura preparada por líderes da Pastoral. As crianças avaliadas foram divididas em dois grupos, metade delas apresentava anemia. Ao fim do estudo, constatou-se que não houve diferença entre as que receberam o farelo e as que não receberam: o produto não foi capaz de melhorar a anemia ou promover benefícios significativos no estado nutricional das crianças presentes no estudo.
Esse resultado levou a Pastoral a reforçar que a multimistura não deve ser considerada remédio, especialmente para anemia. As evidências mostraram também que a eficácia do trabalho da Pastoral vinha muito mais das ações educativas — como estimular o aleitamento materno, orientar sobre alimentação saudável, apoiar o pré-natal e acompanhar o crescimento das crianças — do que do uso do farelo isoladamente.

Dra. Clara Takaki Brandão, criadora da multimistura./Foto: reprodução site GZH
Assim, a Pastoral reorganizou suas orientações e passou a destacar estratégias mais eficazes e seguras, mantendo o cuidado integral com as famílias. Entre as principais diretrizes atuais estão:
Essas orientações resgatam o espírito inicial da multimistura, que não é a substituição da alimentação de costume, mas o seu enriquecimento, sempre com alimentos reais, regionais e acessíveis. A Pastoral reforça também que é fundamental que cada criança faça ao menos cinco refeições diárias, que alimentos crus como frutas e folhas estejam presentes no dia a dia e que o consumo seja variado, acolhendo aquilo que a comunidade produz e conhece.
A multimistura, compreendida corretamente, faz parte de um aprendizado maior sobre aproveitamento integral dos alimentos e nutrição comunitária. Não funciona para tratar anemia e não deve ser usada com essa intenção. Mais eficazes que qualquer pó são as ações educativas, o acompanhamento constante das famílias e o cuidado amoroso que sempre norteou a missão da instituição. Como lembra a própria Pastoral, a criança cresce não apenas do que come, mas também da “vitamina A e C”: A de Amor e C de Carinho, que alimentam corpo, confiança e dignidade.
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