Bullying: quem paga a conta?

Bullying: quem paga a conta?

No dia 07 de abril, a partir de 2024, o Brasil passará a viver o Dia Nacional de Combate ao Bullying e à Violência na Escola. Este ano, a Lei Nº 14.811 transformou o bullying (intimidação sistemática) e o cyberbulling (intimidação sistemática no ambiente digital) em crimes ao acrescentar o artigo 146-A no Código Penal. Neste artigo, vou abordar os impactos da nova criminalização dentro da sociedade.

Os novos crimes incluídos no Código Penal pela Lei nº 14.811, de 2024

1. Intimidação sistemática (bullying)

Art. 146-A. Intimidar sistematicamente, individualmente ou em grupo, mediante violência física ou psicológica, uma ou mais pessoas, de modo intencional e repetitivo, sem motivação evidente, por meio de atos de intimidação, de humilhação ou de discriminação ou de ações verbais, morais, sexuais, sociais, psicológicas, físicas, materiais ou virtuais: 

Pena: multa, se a conduta não constituir crime mais grave.  

2. Intimidação sistemática virtual (cyberbullying)  

Parágrafo único. Se a conduta é realizada por meio da rede de computadores, de rede social, de aplicativos, de jogos on-line ou por qualquer outro meio ou ambiente digital, ou transmitida em tempo real: 

Pena: reclusão de 2 (dois) anos a 4 (quatro) anos e multa, se a conduta não constituir crime mais grave.

Reflexões sobre o bullying e o sistema jurídico

É preciso ressaltar que o bullying surge da intimidação sistemática contra alguém, especialmente no ambiente escolar. Ele ocorre quando existe violência física ou psicológica e está presente em cada atitude de humilhação ou constrangimento.

A violência escolar engloba ataques físicos, insultos, ameaças, apelidos pejorativos e exclusão social. Podemos dizer que o bullying é todo ato de violência física ou psicológica, intencional e repetitivo que ocorre contra uma ou mais pessoas.

Geralmente, as meninas sofrem mais a violência psicológica e os meninos a violência física dentro da escola. O constrangimento entre os meninos é mais agressivo e evidente. O bullying é mais sutil e mais difícil de provar entre as meninas, pois é formado por pequenas atitudes de intimidação emocional e isolamento.

Acontece que as meninas costumam reclamar mais acerca do que vivenciam na escola para as suas mães enquanto os meninos (vítimas de bullying) buscam esconder as agressões. Infelizmente, a maioria deles não recebe apoio emocional quando são agredidos dentro da escola. Os meninos são incentivados a revidar as agressões em vez de buscar ajuda psicológica infelizmente.

Meninos e meninas precisam de mais apoio emocional no ambiente escolar. A menina, por exemplo, é vista injustamente como “frágil”, complexa, “problemática” e sensível demais se resolve desabafar sobre os desafios psicológicos que enfrenta dentro da escola.

Quando a mãe de uma menina resolve conversar com o diretor da escola sobre o que a sua filha está reclamando, nem sempre ela é vista com bons olhos pelo simples fato de mostrar os problemas que existem dentro das salas de aula.

Uma reclamação justa tira a “venda” dos olhos dos adultos da escola e convida o sistema pedagógico a trabalhar mais em busca de harmonia escolar. Nem toda escola quer “arregaçar as mangas” para consertar as adversidades do bullying, sair da “zona de conforto” e trabalhar para a criação de um ambiente melhor.

Entretanto, sabemos que, por mais que o papel principal da escola seja ensinar, todo ambiente que envolve seres humanos (especialmente aqueles que envolvem crianças) deve zelar por justiça, harmonia, boa convivência e paz.

Tendo em vista que as injustiças do ambiente escolar não são resolvidas de forma direta e administrativa, o Direito Criminal resolveu atuar na questão do bullying. É admirável que o Poder Público e o legislador penal expressem interesse na regularização da convivência nas escolas e no combate ao bullying, mas será que criminalizar o bullying é o caminho mais eficaz para garantir paz nas escolas?

É claro que temos necessidade de zelar pelo bem-estar dos estudantes e que o bullying é um ato imoral que precisa ser combatido pela sociedade. Depois que a população percebeu que ataques terríveis passaram a ocorrer nas escolas brasileiras (esses ataques costumavam acontecer mais nos Estados Unidos), o Poder Público começou a se preocupar mais com o bullying, o qual é a raiz do ciclo da violência escolar.

Mas será que o Direito Penal (o setor do Direito que aborda os crimes) deve ser o principal meio para combater o bullying? No mundo jurídico, as ações imorais e os pecados não serão, necessariamente, crimes. Aprendemos, ao estudar as leis, que nem tudo o que é imoral pode ser objeto das leis criminais.

Sinceramente, criminalizar mais uma conduta nem sempre é garantia de justiça, eficiência social e paz. Ao contrário, o excesso de criminalização de comportamentos pode demonstrar uma sociedade imatura e ineficaz do ponto de vista moral.

Se precisamos transformar tudo em crime e colocar penas de prisão ou multa para a maioria dos atos imorais que incomoda a civilização, estamos diante de uma sociedade que não sabe resolver as suas dificuldades de forma pacífica nem educar os seus homens e as suas mulheres com valores éticos e morais. Dentro de uma pátria sem educação moral, a impunidade será evidente ainda que haja a transformação de condutas indesejadas em crimes.

O Direito deve ser o último recurso para resolver os conflitos da sociedade. Infelizmente, o nosso país ainda não amadureceu para implementar políticas públicas que solucionem os desafios atuais sem a necessidade de envolver a Justiça em todos os nossos dilemas sociais e morais. Desse modo, vemos um sistema jurídico superlotado, lento e, muitas vezes, ineficiente.

Dentro do curso de Direito, a famosa expressão jurídica “ultima ratio regum” (a força é o último argumento dos reis) significa que, uma vez esgotados os recursos diplomáticos e administrativos para a resolução de divergências, impõe-se o uso da força.

O conceito de “ultima ratio” determina que o Direito Penal deve ser a última razão do legislador, visto que é necessário esgotar todos os modos de resolução de um problema enfrentado pela sociedade antes de recorrer à lei penal para a solução de um conflito.

Diante da nova lei que criminaliza o bullying, é preciso questionar o país, as escolas, as famílias e a sociedade: será que esgotamos todos os meios para tentar combater o bullying antes de acionar o Direito Criminal?

Deixar todos os nossos impasses nas mãos do Poder Judiciário é o caminho mais fácil para a impunidade. A verdadeira justiça começa no dia a dia com o diálogo fraterno entre as famílias, as escolas e os estudantes sobre os valores morais que devem nortear as nossas relações.

O combate ao bullying mais eficiente começa na escuta atenta das crianças que sofrem injustiças nas salas de aula e no diálogo respeitoso entre os pais e os diretores das escolas. A defesa da paz começa com a educação moral das crianças e com o fornecimento de apoio psicológico e espiritual para elas.

Como defenderemos os direitos das mulheres se ainda não sabemos ouvir as meninas que sofrem bullying nas escolas? Como poderemos dizer que, na nossa sociedade, os homens são agressivos se não sabemos dar apoio emocional para os meninos dentro das escolas?

Antes de acionar advogados, promotores e juízes na problemática do bullying, é recomendável chamar os pais, os professores, os pedagogos, os psicólogos e até mesmo os religiosos na construção de escolas mais virtuosas do ponto de vista moral.

Apoio psicológico, direcionamento espiritual, palestras sobre virtudes e atividades que ensinem sobre a importância de amar o próximo devem estar presentes nas escolas brasileiras. O povo brasileiro é criativo e cheio de fé. Por que não usar a criatividade e a espiritualidade em métodos adicionais para solucionar os nossos problemas sociais?

Falhas técnicas na nova lei

Muito embora seja nobre a preocupação do legislador em relação ao bullying, as falhas técnicas e jurídicas do novo artigo do Código Penal são evidentes. A nova criminalização corre o risco de cair na ineficiência e na impunidade por três motivos: 

Falta de simetria criminal

Do ponto de vista jurídico, o artigo que criminaliza o bullying ficou confuso por misturar condutas pequenas de intimidação (ações verbais) com condutas gravíssimas (intimidação sexual, por exemplo) no mesmo núcleo criminal e com o mesmo tipo de pena (multa) sem estabelecer as devidas diferenças. Toda pena deveria ser proporcional ao crime cometido. O artigo cita vários atos que extrapolam o bullying e que poderiam caracterizar delitos diferentes.

Além do mais, qual é a razão do cyberbullying (bullying praticado no ambiente virtual) ter uma pena mais grave que o bullying comum? Muito embora existam muitas condutas graves no ambiente virtual que geram consequências trágicas para as vítimas na realidade, por que prever uma pena de reclusão para o cyberbullying e aplicar uma simples pena de multa para o bullying que ocorre fora das telas?

Será que o legislador está dando mais importância para o mundo virtual do que para a “vida real”? Por mais que a sociedade contemporânea esteja imersa no mundo digital, a diferença entre as penas é desproporcional.

Inimputabilidade

O bullying propriamente dito é associado à intimidação sistemática que acontece dentro das escolas. Desse modo, aqueles que praticam as atitudes que caracterizam essa transgressão são menores de idade.

Considera-se criança a pessoa até doze anos de idade incompletos, e adolescente aquela entre doze e dezoito anos de idade (artigo 2, Lei N° 8.069). Os menores de 18 anos são penalmente inimputáveis, ficando sujeitos às normas estabelecidas na legislação especial (artigo 228 da Constituição Federal e artigo 27 do Código Penal).

Tecnicamente, os “menores de idade” não cometem “crimes” (as condutas descritas como crimes são chamadas de atos infracionais quando praticadas por crianças e adolescentes). Acontece que os autores da intimidação sistemática nas escolas e nos ambientes digitais costumam ser adolescentes ou até mesmo crianças. Se, para os jovens, o bullying não é crime, a nova “criminalização” do ato não tem qualquer valor na prática do combate à violência escolar.

Podemos acrescentar que o “bullying” praticado entre os adultos já é combatido no ordenamento jurídico de certa forma. Na legislação criminal, o constrangimento ilegal, a ameaça, os crimes contra a honra, o crime de assédio sexual e o de assédio moral buscam proteger as pessoas de qualquer intimidação.

É admirável determinar proteção legal para as crianças quanto ao bullying. Porém, muitas vezes este ocorre entre as crianças e os adolescentes nas escolas. Se aquele que comete o ato é outro jovem ou outra criança, o que o Direito poderá fazer? Infelizmente, sabemos que muitos menores de idade cometem atitudes terríveis contra os seus semelhantes mesmo sendo inimputáveis.

Pena de multa

No mundo jurídico, muitos estudiosos têm afirmado que o grande erro técnico do legislador foi estabelecer uma pena de multa isolada para o bullying. Não existe “criminalização” verdadeira se a pena aplicada para a transgressão for somente a pena de multa.

De forma técnica e jurídica, um crime é caracterizado a partir do momento que a lei determina pena de reclusão ou de detenção, quer isoladamente, quer alternativa ou cumulativamente com a pena de multa (artigo primeiro da Lei de Introdução do Código Penal).

Além do mais, quem pagará a multa pelo bullying praticado? Se crianças e adolescentes não têm independência financeira, poderíamos transferir a responsabilidade da multa para os pais ou responsáveis?

Por enquanto, ninguém é capaz de “pagar a conta” do bullying, e a vítima continuará sofrendo com os prejuízos morais, psicológicos, sociais e até econômicos que surgem a partir dos males da intimidação.

Contudo, há maneiras mais eficientes para aliviar o sofrimento da vítima sem envolver o Poder Judiciário: ações sociais e diálogos fraternos. É dever da família, da comunidade, da escola, da sociedade e do poder público assegurar a dignidade das crianças e dos adolescentes.

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