Cotidianamente você acompanha aqui no IDe+ histórias inspiradoras de amizade, fé, superação, etc. Hoje, a nossa colunista Taty Casarino nos presenteou com a sua história de amizade. É sobre, nas palavras da advogada, uma das pessoas mais inspiradoras que conhece: Elisama Romero de Quevedo.
Elisama tem uma doença rara na visão, descoberta recentemente por meio de testes genéticos nos Estados Unidos. Sua doença é chamada “Síndrome Rosah”, e leva à cegueira total.
Essa síndrome é caracterizada por uma distrofia no nervo da retina, sendo considerada uma doença autoimune. No mundo, a descoberta científica é recente e ocorreu na Austrália, em 2004, e nos Estados Unidos, em 2012. A Síndrome Rosah é uma mutação genética no gene ALPK1.
Na infância, Elisama perdeu a visão noturna e, em seguida, já na adolescência perdeu a visão periférica. Em decorrência da degeneração provocada pela doença, perdeu a visão do olho direito na fase adulta quando estava prestes a conquistar o seu sonhado diploma na Faculdade de Direito.
Ela vivenciou a perda da visão do olho direito na fase mais complexa da vida acadêmica e profissional, com Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) a ser apresentado, além da proximidade do Exame da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).
Embora vivesse com tantos obstáculos na época em que eu a conheci, Elisama foi aprovada com excelente nota em seu Trabalho de Conclusão de Curso e passou na OAB logo na primeira vez que prestou o exame (uma vitória rara para os estudantes de Direito).
Taty e Elisama em uma confraternização
Mesmo com todas as dificuldades, a minha amiga transformou as pedras da sua jornada em degraus de subida rumo ao sucesso, já que ela decidiu, com força de vontade, as metas mais bonitas da sua caminhada: dar palestras motivacionais, escrever livros, trabalhar como advogada e abraçar causas para melhorar a vida das pessoas com deficiência.
Infelizmente, ela apresenta menos de 30% de visão no olho esquerdo atualmente. Seu diagnóstico acerca da Síndrome Rosah chegou tarde em sua vida, porque a maioria dos médicos pensava que ela tinha outro problema na visão: Retinose Pigmentar (outra doença visual rara e sem cura que causa degeneração nas células da retina).
Muito embora a doença de Elisama seja confundida com a Retinose Pigmentar, a Síndrome Rosah é uma doença diferente, que carrega outros sintomas ainda mais raros e desconhecidos além da perda da visão.
Dentro da língua inglesa, a sigla da Síndrome Rosah demonstra os efeitos que ela causa nos olhos e em outros órgãos: retinopatia (danos à retina), edema (inchaço) do nervo óptico, esplenomegalia (aumento do volume do baço), anidrose (ausência de suor) e dores de cabeça.
No Brasil, o tratamento dessa síndrome é quase desconhecido. Elisama é uma das raras pessoas diagnosticadas com essa síndrome no mundo. A família da minha amiga tem origem humilde, mas investe em seu tratamento de saúde visual desde a infância dela (época em que desconhecia o diagnóstico correto). Ao longo do seu tratamento, Elisama também investiu em cirurgias de catarata.
Mesmo se não houver a cura total, a pesquisa científica sobre essa síndrome pretende, ao menos, evitar a degeneração decorrente das doenças autoimunes. Ainda que Elisama não recupere a visão completamente, ela gostaria que a doença “estacionasse”. Com a doença “estacionada”, ela não perderia a visão com o passar dos anos e poderia preservar a porcentagem de baixa visão que possui no olho esquerdo, evitando a cegueira total.
Enfrentar o medo da cegueira total é uma batalha diária da Elisama. Qualquer pessoa que tivesse um diagnóstico com a previsão de perda total da visão, com o passar do tempo, enlouqueceria, principalmente dentro de um contexto repleto de dificuldades financeiras que levam à impossibilidade de investir em tratamentos caros de saúde visual com o próprio bolso.
Ocorre que a fé é capaz de transformar desespero em esperança. E, Elisama é uma dessas pessoas com muita fé no coração, pois ela tem, na pessoa de Jesus Cristo, a firme rocha de esperança para a sua vida.
Conheci a Elisama quando eu estava no oitavo semestre da Faculdade de Direito de Santa Maria (a faculdade apresenta dez semestres) em meados de 2013. Nós nos conhecemos no corredor da faculdade e fomos apresentadas uma para a outra por uma colega em comum. Elisama não fazia parte da minha turma regular, mas pretendia adiantar um ano da faculdade. Por adiantar o estudo de algumas matérias, ela foi minha colega de classe em algumas aulas de direito.
Tradicionalmente, o curso de Direito tem a duração de cinco anos. Mas, Elisama resolveu concluir a faculdade em quatro anos. Por conta da doença degenerativa na visão, Elisama sempre teve pressa em concluir os seus sonhos. Com muita garra e disciplina, ela estudava manhã, tarde e noite para alcançar a minha turma (ela pertencia a uma turma que era um ano mais nova que a minha) e concluir a formatura antes do seu tempo regular.
Mesmo sem enxergar as anotações do professor no quadro, Elisama compensava a absorção do conteúdo com a audição e digitava tudo o que o professor falava em seu notebook. Ela sempre foi uma excelente aluna, pois escutava muito bem as explicações além de apresentar uma habilidade de oratória excelente (sabemos que falar bem é um elemento bastante valorizado no mundo jurídico).
As provas da Elisama apresentavam letras ampliadas para que ela pudesse ler e responder as questões. Como a Elisama tem um pouco de visão no olho esquerdo, ela conseguia enxergar textos com letras grandes. Sendo assim, os professores tinham de fazer provas com acessibilidade para ela, aumentando o tamanho da fonte da letra.
No final da faculdade, Elisama buscava alguém que pudesse guiá-la até o diploma, pois ela enfrentaria dificuldades na trajetória entre as cadeiras dos formandos e a mesa das autoridades e professores para apanhar o diploma na cerimônia de formatura com o problema na visão.
Quando nós nos conhecemos, ficamos amigas rapidamente. Elisama me achou muito simpática logo que me viu, e eu achei virtudes lindas dentro dela. Uma colega em comum indicou o meu nome quando ela estava em busca de alguém para guiá-la no dia especial da formatura. Nós trocamos algumas palavras no corredor da faculdade e, depois disso, ficamos amigas no Facebook.
Em uma conversa no Messenger do Facebook, Elisama me explicou a sua realidade. Jamais imaginei que a colega bonita, simpática e sorridente que eu havia encontrado no corredor da faculdade enfrentasse tantos problemas. Prontamente, eu aceitei guiar Elisama até o diploma no dia da nossa formatura.
Antes disso, passei a guiá-la nos corredores da faculdade quando nos encontrávamos por lá. É recomendável que Elisama tenha alguém ao lado dela para indicar os móveis do ambiente, a localização da porta e outros detalhes que passam despercebidos para quem tem problemas na visão.
As pessoas com pouca visão se sentem constrangidas quando colidem em uma porta de vidro ou quando se machucam em algum móvel, por exemplo. Por isso, eu estava sempre ao lado de Elisama, cochichando em seus ouvidos sobre todo o ambiente da faculdade e guiando os seus passos de braços cruzados com ela. Nem sempre os ambientes contam com acessibilidade total, razão pela qual é mais seguro, para a pessoa com deficiência, ter alguém ao lado que avise sobre os obstáculos dos lugares, como degraus, escadas e paredes estreitas.
Ficamos ainda mais próximas quando trabalhamos juntas no Serviço de Assistência Jurídica (SAJ) da faculdade e compartilhamos as histórias de nossas vidas. Estudávamos juntas, participávamos das festas da faculdade e costumávamos passear pelo centro de Santa Maria (RS). Adorávamos sair juntas para comer pizza ou batata frita e dávamos risadas quando o nosso senso de humor aflorava.
Temos histórias engraçadas para contar do tempo da faculdade. Certa vez, fomos a uma festa à fantasia da turma e Elisama me pediu para identificar as fantasias das pessoas com a minha visão. Fui os olhos da Elisama nessa festa, mas, como não entendo muito de fantasias, confundi diversos personagens representados por nossos colegas. Confundi Johnny Bravo com Bob Esponja na hora de falar para ela a respeito da fantasia de um dos nossos colegas.
Quando descíamos uma rampa ou uma escada, Elisama confessava que a descida era mais fácil para ela, e eu logo colocava humor em tudo, dizendo um ditado popular: “minha amiga, para descer, todo santo ajuda”.
Uma vez, estávamos descendo uma rua e o sapato de uma de nós ficou para trás, provocando muitas risadas. Até nos momentos em que eu guiava Elisama havia muito bom humor.
Além da leveza e do bom humor, nossa amizade sempre teve muita espiritualidade. Eu sou católica e Elisama é evangélica, mas sempre nos respeitamos muito e focamos em tudo o que temos em comum: os valores cristãos, a fé na palavra de Deus e o amor por Nosso Senhor Jesus Cristo.
Quando chegou o dia da nossa formatura, eu guiei a Elisama das cadeiras dos formandos até a mesa das autoridades e dos professores com uma das minhas mãos segurando a mão dela. Nesse dia, vestíamos as nossas becas pretas com capas sobre os ombros, o clássico babado branco sob o pescoço e as faixas vermelhas em volta da cintura. Dentro dos nossos trajes bonitos, um filme sobre todas as nossas dificuldades vencidas passou em nossas mentes e encheu os nossos corações de honra e alegria.
A nossa tão sonhada beca (beca preta com uma faixa vermelha na cintura) comunicava muitos símbolos além da elegância: era a nossa marca de entrada no mundo jurídico. O preto, quando é a cor de uma roupa, simboliza mistério, autoridade, discrição, poder, força e inteligência. No direito, o vermelho caracteriza o dom da fala e da escrita além de ser visto na joia que representa o mundo jurídico: o rubi. Essa joia está presente em muitos anéis de formatura e tem o simbolismo associado às capacidades de liderança e justiça.
A balança, símbolo máximo do direito, estava como uma insígnia no chapéu da formatura, representando o nosso dever de servir à sociedade com equilíbrio, justiça e imparcialidade na luta pela igualdade de direitos.
Não tivemos constrangimento algum de caminharmos juntas até a mesa das autoridades ao som de uma música que louva a Deus: “Quando eu chorar”. Essa música da cantora gospel Bruna Karla faz parte de um álbum cujo nome tem tudo a ver conosco: “Advogado Fiel”. A letra dessa música toca profundamente o coração de Elisama, porque tem a ver com a sua trajetória de fé e resiliência.
Nesse momento, enquanto eu segurava a sua mão e indicava o caminho, eu também cochichava em seus ouvidos o nome de cada autoridade e de cada professor para que ela pudesse saber onde estava cada um e cumprimentá-los. Elisama se emocionou fortemente quando o professor impôs o chapéu de formatura em sua cabeça e pronunciou a frase: “confiro-lhe o grau de Bacharel em Direito”. Em seguida, ela apanhou o diploma e cumprimentou as demais autoridades.
Com o canudo da formatura em mãos, Elisama foi aplaudida de pé pelos nossos colegas e por várias pessoas que assistiam à cerimônia de formatura. As autoridades e os professores presentes também ficaram de pé em respeito à vitória da Elisama, formando um momento extraordinário.
Nesse instante, eu sorri e olhei para ela com os olhos brilhando de verdadeira admiração, já que o meu coração estava cheio de alegria como se o prazer da vitória e da superação de Elisama fosse o meu também. Acredito que o verdadeiro amigo é aquele que, além de ser generoso nas suas dificuldades, também demonstra alegria genuína nos seus momentos de vitória.
Elisama ficou emocionada e me abraçou antes de retornar à cadeira destinada a ela em uma das fileiras dos formandos na nossa cerimônia de formatura. Após a formatura, eu fiquei sabendo que muitas pessoas ficaram emocionadas com a nossa amizade, com a história de superação da Elisama e com o meu gesto de solidariedade na hora da formatura.
Para mim, tudo era tão natural que eu não percebi o quanto o momento era extraordinário. É claro que senti a vibração especial da cerimônia de formatura e que o meu coração estava cheio de alegria como se eu estivesse vivendo um sonho, porém eu não tinha noção do quanto era excepcional tudo aquilo para os olhos das outras pessoas.
Muitas pessoas acharam o meu gesto de generosidade admirável, mas ajudar as pessoas sempre foi algo muito comum para mim. Dentro do meu coração, o momento da formatura era o ápice e a extensão de tudo o que eu sempre vivi na faculdade e na minha vida: uma caminhada de companheirismo.
Por trás do topo da montanha, existiram uma caminhada e uma escalada de sacrifício que ninguém viu. Para mim, uma conquista é apenas um belo passo a mais na caminhada. Por isso, a música que eu escolhi no momento que eu peguei o diploma (a denominada música de formatura) foi a seguinte: a “Estrada” da banda “Cidade Negra” (lembrando que a música de formatura da Elisama foi a música gospel chamada “Quando eu chorar”).
Em minha mente, ajudar a Elisama não era um gesto de caridade, mas uma expressão pura e simples de amizade. Durante toda a minha caminhada de vida, sempre gostei de ajudar os amigos. No momento da formatura, a minha caminhada não foi diferente. Afinal, agir com companheirismo não é o que os bons amigos fazem?
Sempre vi a Elisama como uma mulher “normal”. Apesar de não gostar da palavra “normal”, esta foi a palavra que encontrei para ser mais clara. Naturalidade, normalidade e simplicidade são as palavras que guiam os meus gestos de companheirismo.
Elisama é uma mulher comum com uma história de superação extraordinária por causa da sua limitação visual. Entretanto, sua limitação não retira a normalidade da sua vida e da nossa amizade. Às vezes, confesso que até me esqueço que ela tem deficiência visual quando estamos conversando os mais variados assuntos tranquilamente. Acabo recordando da limitação dela quando preciso guiá-la em alguma ocasião especial.
Penso que a verdadeira generosidade é aquela que brota naturalmente do nosso coração − até mesmo sem a devida consciência da nobreza do gesto. Gosto de refletir sobre o Evangelho e seguir o que Jesus nos ensinou: “Quando deres esmola, que a tua mão esquerda não saiba o que faz a tua mão direita.”
Por essa razão, não conto o que faço para ajudar as pessoas. Já ouvi dizer que Santa Teresinha defendia a passagem citada do Evangelho além de acreditar que devemos esconder as nossas boas obras até de nós mesmos a fim de conservar a humildade, a simplicidade e a pureza de coração. Apenas contei a minha história com a Elisama para mostrar a qualidade da nossa amizade e não para destacar qualquer ato generoso da minha parte.
Creio fortemente que a verdadeira generosidade é silenciosa, simples e pura. Nesse caminho, é válido encarar os gestos de companheirismo e solidariedade de forma natural. Gostaria de viver num mundo onde gestos de bondade fossem recebidos naturalmente em vez de causarem elogios, aplausos, estranheza e espanto.
Do mesmo modo que eu vivo uma caminhada de companheirismo com os pés no chão e sem perder a simplicidade, Elisama também não deixou a sua história de superação subir à cabeça. Sendo assim, Elisama não ficou soberba com um diploma de Direito em mãos como muitas pessoas da nossa área ficam por causa do “status” que o nosso curso carrega historicamente.
Por trás da beca ou da toga, sabemos que existem pessoas de carne e osso. Por trás da “pompa e circunstância” jurídica, existem duas mulheres que louvam a Deus e que reconhecem a mão d’Ele por trás de tudo o que nós temos hoje. Aliás, um dos fatores que sempre achei bonito por parte da Elisama é a maneira como ela sempre afirma que foi a mão de Deus que sustentou a sua trajetória. Tudo o que Elisama conquista é oferecido para glorificar a Deus em vez de alimentar qualquer “vanglória” ou enaltecimento pessoal.
A minha amizade com a Elisama tem raízes bonitas, fortes e alimentadas pelo respeito às memórias afetivas que construímos juntas. Nossas raízes de companheirismo são tão fortes que nem a distância física apagou a nossa amizade. Eu saí de Santa Maria (cidade do interior do Rio Grande do Sul) há 06 anos, mas nós continuamos amigas com o mesmo sentimento de fraternidade.
Há 6 anos, Elisama fez uma festa de despedida para me homenagear antes da minha viagem. Nós também fizemos um ensaio fotográfico juntas no Santuário de Schoenstatt de Santa Maria para termos boas recordações da nossa amizade nessa cidade.
Ela me deu uma Bíblia de presente para abençoar a minha mudança de cidade. Dentro da Bíblia, eu descobri um segredo dela: um papel com uma lista de virtudes que Elisama queria encontrar em seu futuro marido, tais como: lealdade, bom humor, fé, inteligência e respeito aos animais (eu e Elisama somos defensoras dos direitos dos animais). Eu costumo brincar com ela, dizendo que, se eu achei o segredo dela, isto significa que eu realmente abri e li a Bíblia que ela me deu.
A fé promoveu o encontro entre Elisama e um homem com todas as qualidades que ela queria. Elisama é casada hoje com um homem virtuoso e que também adora louvar a Deus: o Diomar. Eles costumam dizer que Deus não une pessoas: Deus une propósitos.
Mesmo morando em cidades diferentes (Elisama mora em Santa Maria − RS e eu moro em São José dos Campos – SP), a tecnologia permite a nossa comunicação. Elisama sempre me conta as novidades da sua vida e torce pelas metas da minha jornada. Nesse tempo, vi Elisama amadurecer de longe e tornar-se uma mulher ainda mais sábia.
Gostou dessa história e quer saber mais sobre Elisama? Ela tem um canal no Youtube e você pode acessar por esse link. O “Direito na Rampa” é dedicado aos direitos das pessoas com deficiência.
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